As próximas linhas servirão ao intuito de registrar para a posteridade um breve momento de fúria. Um desses que nos escapam o tempo todo, a ponto de quase esquecermos deles ao fim do dia, programados que somos para acreditar que o convívio civilizado resulta apenas da tolerância. Ontem, o meu programa falhou.
Seguia para o centro da cidade de ônibus (eu acredito em transporte coletivo), como fazem as pessoas de bem nas primeiras horas da manhã. O trajeto de pouco mais de quinze minutos me deu tempo suficiente para pensar sobre o motivo da viagem; não é incoerente que ainda hoje se faça necessário obter um carimbo em cartório sobre determinada assinatura, a título de provar que a pessoa é ela própria?
Numa época em que o scaneamento de retinas controla a entrada em prédios comerciais, e em que leitores de impressões digitais liberam catracas de academias de ginástica, não seria plausível haver algo menos dispendioso para comprovar a legitimidade de um documento? O método de comparação visual, que além de trabalhoso dá margem a equívocos, remonta ao apogeu das caravelas! Algo similar ocorre ao papel higiênico, no entanto prefiro preservá-los dos pormenores.
Pois bem, antes de despachar a papelada pelo correio era preciso xerocar vinte folhas, dispostas em ordem cronológica, mas não numeradas. Do outro lado do balcão o funcionário conversava animado ao telefone, dando a entender que minha permanência, plantado como um dois de paus em sua frente, aparentemente não representava qualquer motivo para que interrompesse a ligação.
Quando fartou-se de falar resolveu me atender. É provável que o assunto em questão – algo sobre a Leninha – tenha o distraído de perceber que a máquina precisava ser abastecida de papel. O lapso interrompeu o serviço pelo meio, num ponto em que nem eu, nem ele poderíamos precisar sem que fossem contadas e reordenadas, uma a uma, as vinte folhas. A confusão era tamanha que cópias e originais me foram devolvidos embaralhados, de forma que até agora não sei se enviei pelo correio os papéis que deveria.
Findada a missão e de volta ao ponto de ônibus, desta vez indo no sentido contrário ao das pessoas de bem, um caminhão de bebidas descarregava cascos de vidro na porta de um botequim. O veículo encontrava-se estacionado mais ou menos onde nós, os passageiros, deveríamos esperar pela condução. Como se isto não fosse suficiente, os motoristas de dois ônibus consecutivos julgaram que o fato do caminhão estar onde não deveria lhes assegurava a possibilidade de ignorar aquele parada e, com sorte, chegar um pouco mais cedo em casa.
Transtornado pela enorme demonstração de desrespeito, atravessei a rua e fui comprar uma panela de pressão. Não, isto não é uma simpatia, tampouco uma técnica de controle da raiva. A substituição da panela de alumínio aqui de casa por uma de aço inox já era uma providência que pendia em minha lista de afazeres. Na verdade o artefato tornou-se o grande vilão da cozinha, desde que minha mulher foi convencida de que o “vil metal” pode transferir-se para os alimentos e, ao longo dos anos, causar danos à saúde. Pelo sim, pelo não, considerei que procurar pela tal panela, naquele instante, seria uma ótima desculpa para não continuar mofando no ponto de ônibus.
Agora estou numa enorme loja de departamentos, mais precisamente aguardando, com a mercadoria nas mãos, na fila que se forma antes da área dos caixas. Apenas dois operam, e lentos que só. Quando por fim chega minha vez, sou avisado de que devo procurar o serviço de atendimento ao consumidor, para retirar o piloto (aquele que apita e solta fumaça) da panela. Mas qual seria a razão das duas peças não estarem na mesma embalagem? –– perguntei. “ É que se deixar na caixa o povo leva”. Santa inocência a minha…
No SAC, assim como na xérox, a funcionária falava ao telefone. Também como na xérox, minha presença não causava qualquer constrangimento, visto que, pelo que pude perceber, a conversa se dava entre colegas da mesma loja, muito embora o assunto não pudesse exatamente ser considerado de cunho profissional. Como forma de protesto, pensei em sentar sobre a caixa da panela e cruzar os braços, para, no momento seguinte, concluir que a atitude poderia ser interpretada como uma demonstração de que não havia nenhuma razão para se ter pressa.
Munido do piloto, optei por voltar para casa de metrô, evitando assim a repetição do traumático episódio vivenciado pouco antes. O metrô do Rio é acanhado, mas funciona bem. Há alguns anos a pequena extensão da malha de subterrâneos, insuficiente para atender à dimensão da cidade, originou um serviço complementar, chamado Integração. De cada uma das estações é possível partir para novas localidades sem pagar outra passagem, bastando ao usuário escolher a linha que melhor lhe atenda.
Ontem não consultei o horóscopo, mas não me causaria espanto caso houvesse uma recomendação específica para que os nascidos sob meu signo evitassem o transporte público naquele dia. O motorista do microônibus (adivinhem) conversava aos berros no telefone, indiferente aos idosos e estudantes da rede pública que se amontoavam por conta de um problema no leitor de seus cartões de gratuidade. Talvez fizesse mais sentido – e causasse menos aborrecimento – instituir logo as manhãs de segunda-feira como ponto facultativo, destinadas a colocar em dia as fofocas do final de semana.
Só depois de uns dois ou três gritos o sujeito, contrariado, resolveu nos colocar em movimento. A repreensão dos passageiros pela demora na partida resultou numa condução semelhante a que se faria numa pista de kart. O pesado veículo trotava feito mula brava, e a simples tentativa de se manter de pé em seu interior era desafio digno dos melhores peões. Lembrei-me então daquele filme do Michael Douglas, em que o cara simplesmente explode e sai barbarizando pela cidade. E foi nesta altura que experimentei um breve momento de fúria, rapidamente contornado.
A despeito da óbvia alusão a ser feita entre a panela e eu, cheguei ao destino final com a impressão de que uma década de ingestão de alumínio causaria menos prejuízo à saúde do que manhãs como esta.
Instante Posterior
Texto: Bruno Medina
http://colunas.g1.com.br/instanteposterior/
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